Especialistas alertam que o hábito de ler profundamente está em risco com o uso excessivo de telas e o consumo fragmentado de informação
Ler não é um instinto humano, mas uma invenção cultural que transformou profundamente o cérebro e a sociedade. E, segundo cientistas, essa habilidade pode estar em declínio.
“Nós pensamos na linguagem como algo natural, e deduzimos que a escrita também seja. Mas não é”, afirma Maryanne Wolf, neurocientista cognitiva da Universidade da Califórnia em Los Angeles e autora do livro O Cérebro Leitor.
Para ela, a leitura é resultado de um processo de adaptação cerebral que reciclou circuitos originalmente destinados a outras funções como o reconhecimento de objetos e os transformou em conexões dedicadas à decodificação de símbolos, letras e sons.
Quando lemos, o cérebro ativa áreas responsáveis por visão, linguagem, memória e emoção, em uma rede complexa que se aperfeiçoou ao longo de milênios. Desde os símbolos sumérios gravados em argila até os textos digitais atuais, a leitura se tornou um dos principais motores do pensamento humano.
Wolf cita estudos que mostram como uma simples palavra pode ativar múltiplos conceitos no cérebro. O termo bug, por exemplo, pode remeter a insetos, falhas de sistema e até ao modelo de carro da Volkswagen — tudo em questão de milissegundos.
O idioma aprendido também impacta as conexões cerebrais. Línguas como o chinês, que utilizam caracteres visuais complexos, ativam áreas distintas em comparação com idiomas ocidentais.
Na década de 1930, um estudo de caso mostrou que um homem chinês, após sofrer um AVC, perdeu apenas a capacidade de ler chinês, mantendo intacta a leitura em inglês evidência de que os circuitos cerebrais se adaptam de forma diferente conforme o sistema de escrita.
O contato com livros ainda na primeira infância é decisivo para o desenvolvimento emocional e cognitivo. Mesmo antes da alfabetização formal, ouvir histórias já ajuda a criança a desenvolver empatia, imaginação e raciocínio.
Por outro lado, a falta de estímulo pode causar impactos duradouros. Um estudo americano de 1995 apontou que crianças de famílias com menos acesso à leitura escutam cerca de 30 milhões de palavras a menos até os três anos de idade, em comparação com aquelas criadas em ambientes mais estimulantes.
A crescente exposição a telas e redes sociais tem mudado a forma como lemos. Rolagens rápidas, interrupções constantes e leitura em blocos curtos afetam negativamente a capacidade de concentração.
“Quando você apenas passa os olhos por um texto, absorve pouco do conteúdo real. E perde também a beleza da linguagem”, alerta Wolf. A cientista chama essa nova forma de leitura fragmentada de “crise silenciosa”, que pode comprometer a compreensão crítica, a análise de argumentos e o prazer pela leitura.
A leitura também representa um desafio para milhões de pessoas com dislexia uma condição neurológica que dificulta a decodificação de palavras e sons. “Essas crianças são frequentemente mal compreendidas e rotuladas como preguiçosas”, diz Wolf, que tem um filho com dislexia e coordena um centro de estudos sobre o tema.
Apesar das dificuldades, muitos disléxicos demonstram habilidades acima da média em criatividade, resolução de problemas e pensamento visual. Há teorias de que figuras como Leonardo da Vinci e Albert Einstein possam ter tido dislexia. Atualmente, recursos pedagógicos e tecnológicos ajudam a garantir que essas crianças tenham acesso à leitura e ao aprendizado.
Para Maryanne Wolf, o caminho para reverter esse cenário exige esforço coletivo. Pais, professores e a sociedade como um todo precisam recuperar e valorizar o hábito da leitura.
“Ler é um santuário. É onde as crianças aprendem a pensar por si mesmas”, defende. Em um mundo hiperconectado e distraído, a leitura profunda pode ser uma das ferramentas mais poderosas de resistência e transformação.