Seja bem-vindo, leitor, a uma necessária e incômoda reflexão. Em um tempo em que tudo se torna conteúdo, inclusive a vida íntima de crianças que mal aprenderam a falar, é urgente discutirmos os efeitos da hiperexposição infantil nas redes sociais — e, mais profundamente, na constituição emocional dessas crianças. Não é raro, hoje, abrir qualquer aplicativo e se deparar com vídeos de crianças em situações “engraçadas”, “fofas” ou “emocionantes”. Muitas vezes esses registros ultrapassam os limites do bom senso. Choram, gritam, reagem a sustos, participam de trends com dancinhas e frases ensaiadas, tudo com o celular dos pais gravando e, o que é mais preocupante, com milhares de pessoas assistindo.
Esse fenômeno, denominado “oversharenting” — junção dos termos em inglês oversharing (compartilhar em excesso) e parenting (criação dos filhos) — é mais do que um modismo. Trata-se de uma prática que levanta questões éticas, psicológicas e educacionais sérias. Pais e responsáveis, muitas vezes sem noção dos impactos, transformam seus filhos em personagens de um teatro digital, onde cada gesto é uma performance esperando curtidas e comentários. Nenhuma criança é original depois do primeiro vídeo exposto, pois a figura do celular na mão já faz a criança manter uma postura antes já recompensada. Ou seja, a criança já detectou que precisa fazer coisas que terão recompensas quando o celular está na mão dos pais ou tutores. E muitos vídeos tidos como “fofos” são deveras repetidos para engajar e causar um impacto, não tornando a situação real, mas sim forçada.
Do ponto de vista da Psicologia do Desenvolvimento, essa constante expectativa por validação externa, (que se inicia quando os adultos recompensam certos comportamentos com filmagens e elogios públicos) pode desregular o senso de autenticidade e prejudicar a construção de uma autoestima sólida. A criança aprende a “atuar” para ser amada, e não simplesmente a ser quem é. Mais do que isso, essas exposições não acontecem em uma bolha. Crianças crescem. E o que foi postado hoje poderá retornar como motivo de constrangimento, bullying e sofrimento amanhã. Ao deixar digitalmente exposta a vida da criança, os adultos quebram a confiança de que a infância é um espaço seguro, de descoberta e erro, e não um palco. É fundamental compreender que a criança é sujeito de direitos. E um desses direitos é à privacidade. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê isso. A Constituição, também. Mas na prática, quantos pais pensam no impacto futuro de um vídeo “inofensivo” antes de apertar o botão de publicar?
A solução não está apenas em proibir celulares, mas sim em educar para o respeito e o cuidado com a imagem da infância. É papel dos profissionais da Psicologia e da Educação orientar, promover debates e oferecer subsídios para que os responsáveis compreendam os riscos do oversharenting. Ao final, o chamado é para que voltemos o olhar para o que realmente importa: criar vínculos reais com nossas crianças, fora das câmeras, fora dos aplausos digitais. A infância não é palco. É abrigo. E merece ser preservada com a dignidade que lhe cabe.